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segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

"FANTASMAS EXISTEM" - COLÓQUIOS NUMA TARDE DE VERÃO



     Caieiras.jpg
      Vapor São Paulo - maré baixa - Praia de Caieiras - Guaratuba-PR







FANTASMAS EXISTEM - COLÓQUIOS NUMA  TARDE DE VERÃO

 

 

(Naufrágio do navio-vapor São Paulo (1864), prainha de Caieiras Guaratuba, soldados-escravos, Chiquinha Gonzaga e outros)

 

Meio que sem ter o que fazer, numa destas tardes de verão sai caminhando pela orla. Tomei rumo do quiosque de velho-Elói lá na prainha de Caieiras. Elói, um velho acriano cor de chumbo era muito forte e meio metido a besta.  Veio parar aqui em Caieiras há  mais de meio século e se fez na vida vendendo peixe assado e cachaça na praia. Costumava entreter seus fregueses com suas histórias de migrante. Dizia ser filho de um soldado da borracha com uma índia. Contava que chegara a Caieiras depois de descer o Rio Amazonas, do Purús até Belém em vinte três dias numa jangada comendo jaca,banana e peixe. Depois, pegou um ITA lá no norte (navio-vapor) e veio aportar em Paranaguá. Isso lá pelos  anos cinquenta do século passado. Depois de ter ficado preso por oito meses por  liderar um motim de estivadores no Porto de Paranaguá contra o golde civil-militar de 1964, fugira da Ilha das Peças de onde seguiu a pé andando pela linha costeira da praia, até  chegar em Guaratuba. Bem, vai se saber. O  fato é que o velho-Elói era um grande amigo e contumaz mentiroso.



Cheguei, pelas três da tarde. Me cumprimentou com sua já conhecida e ácida cortesia:
- Boa tarde professor, fique a vontade,  só que o  fiado esta suspendo por falta  de pagamento.  
Nem liguei a rabugice do velho, o que  me agradava era  a solidão do local. 
O silêncio do verão tardio de abril só era quebrado pelo constante marulhar. Permaneci a olhar as ondas por um bom tem tempo. Para quebrar o tédio, perguntei ao velho Elói. - E aí, viu o  ‘fantasma do padre’ novamente?
Ele como que brigando de brincadeira respondeu: -Não vou lhe contar  mais nada, você fica me chamando de mentiroso.
Bem, nem queria muito assunto mesmo. Queria só olhar as ondas quebrarem nas pedras e nos escombros da casa de máquinas do velho navio que ainda se avista nas mares baixas e ali  ficar,  só,  imerso na  paisagem a tomar minha gelada.
Fiquei ali, olhamdo o esqueleto da antiga embarcação já coberto pelas cracas marinhas e imaginando a história do ‘padre fantasma’ contada por tantos caiçaras e que segundo o velho historiador se tratava do restos do navio-vapor São Paulo, que numa noite de forte “vento sul” e nevoeiro, ao adernar para a baia buscando fugir das fortes ondas, ficou preso nos bancos de areia e depois foi arrastado pela força da maré entrante e ido a pique. Um naufrágio a beira praia. 

Os caiçaras mais antigos tem muitas histórias sobre essa noite fatídica. Mas, o velho-Elói parecia saber decor parte do enredo. Contava que por ocasião do afundamento o vapor regressava da Guerra do Paraguai, isso no ano de  1868, transportava ouro, e soldados e munição.  Entre  os tripulantes 600 eram militares. Interessante segundo relatos a grande maioria, mais de quatrocentos eram soldados escravos, que foram trazidos sob correntes, e amarrados junto as árvores para que não fugissem. Moradores ouviriam seus gemidos e gritos nas noites que se seguiram. Já o Elói afirmava que houvera uma rebelião na embarcação, no qual os soldados-escravos se negavam a lutar pelo império do Brasil, e por isso foram trazidos de volta, o que procede já que a guerra do Paraguai só terminaria dois anos após. Muitos foram os feridos mas, houve apenas um óbito,  o de um padre. Aí é que os relatos divergem: Nos contos oficiais, esse padre não existe, já os moradores do local afirmam que ficaram dias procurando o tal padre, cujo corpo jamais foi resgatado. Já nosso anfitrião historiador o velho Elói, afirma que o padre existiu e mais,  que o nosso padre teria vindo numa viagem de cortesia para rever seus familiares, já que este teria realiza realizado o casamento do comandante com a famosa artista “Chiquinha Gonzaga”, uma das maiores pianistas e compositoras da história da música popular do Rio de Janeiro e que também fora resgatado no acidente.
Nesse ponto é que o colóquio vira história de fantasma''. Ele, o velho Eloi afirma que o acidente  foi obra de Deus para punir o tal padre que era maçon-ateu, por ele ter realizado o tal casamento.  já que o comandante da  embarcação também ateu e um famoso mercenário, pirata dos mares a serviço do império  e ela, segundo a época considerada uma “messalina”. E que a tal viagem teria sido  palco de muitas brigas, entre o casal, sendo esta a verdadeira causa do naufrágio. Ou seja, na concepção popular o padre cometera o sacrilégio e por isso fora punido. O fato é que após o acidente, a pianista e cantora se separou definitivamente do capitão-ateu e teve uma vida famosa, mas conturbada, vindo a ser no futuro, acusada por inimigos de se relacionar maritalmente com o filho.
Dessa história toda, o que o ‘velho-Elói’ disse que poderia garantir, é que de real mesmo era o ‘fantasma do padre’. Pois, sempre avistava o tal ‘fantasma do padre’ na casa de máquinas do velho navio quando emerso,  sempre nas luas cheias, sobre os rochedos que circundam a praia de Caieiras.  Isso até o dia que ele resolveu experimentar a imortalidade dos fantasmas e disparou três vezes com seu trinta e oito em direção ao vulto que, segundo ele conta nunca mais voltou a aparecer. Vai se  saber…


Bem, como nem tudo é  perfeito, lá pelas cinco da tarde me aparece o Joanete, um ex-jogador de futebol do Coritiba da  década de setenta. Cujo nome, na verdade um apelido, era devido ao fato que  vivia a reclamar da dor do  joanete crônico e que nunca conseguiu operar.
Chegou, como sempre mancando, sentou e logo disparou a sua choradeira:
- Do futebol,  só ganhei mesmo o joanete e essa dor nojenta. Dizia:
-Mas, minhas ex-mulheres estão todas  bem de vida. Só eu que to fodido aqui nesse fim de mundo. Essa vida é uma grande merda mesmo. Depois, alguém ainda fala que Deus existe. Existe é o caralho. Nós somos é descendentes dos macacos.
Nesse momento, seu parceiro de cachaça, o Joseph que já furioso, depois  de passar a tarde aguentando as lamúrias Joanete, dispara com sua voz grossa e molenga de tanta cachaça:
-Pera lá Joanete,  eu não sou ateu como você, minha crença me permite encher a cara, mas não me permite  ficar ouvindo suas blasfêmias. Deus existe,  criou o homem e criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou. Assim como nós estamos aqui de  sem fazer nada, depois perambular por toda orla de Guaratuba catando latinhas. Agora estamos descansando. 
Então. pare de  reclamar homem. Amanhã vamos catar nossas latinhas, ganhar uns trocos. Depois então, tomamos umas, isso tudo numa boa. Graças a Deus. E lá vem você com suas imundices.  Eu vou me embora... (fez menção de levantar,  mas logo aquietou. O Joseph, era segundo ele próprio dizia, um filósofo formado na universidade do Bolse Livro, que depois de residir na Itália,  onde segundo ele, tinha parentes. Escreveu muitos livros de bolso de Faroeste na década de setenta. Depois do divórcio  resolveu vir para o litoral, aproveitar o resto da vida, que já ia lá pelos sessenta e acabando.


A gente não escolhe onde amarrar nossos burros e nem onde estar se está a toa. Numa boa resolvi participar do colóquio. O chato é que isso sempre acontecia. Acho até que faziam isso para me provocar. Eu já era freguês de aturar aqueles pilantras, já que ambos eram velhos amigos meus. E eu os estimava.
Levantei-me e fui até o beiral que dava vista para o penhasco, o local do aparecimento do ‘fantasma do padre’ e falei:
- Bem  meus amigos, diante dessa acirrada discussão não posso deixar de dar meu pitaco. Ambos estão errados e os dois estão certos. Se você Joanete, pensa em um Deus só para o homem, ou seja, um deus só para olhar as mazelas humanas,  então seu deus não existe, é óbvio. Nisso esta certo, quando a reclamar de sua desgraça nega a existência desse deus, já que, se existisse um deus só para socorrer humanos ele não o deixaria cair naquela visível situação de penúria e miséria.
Joanete ao ouvir essas palavras abriu  um largo sorriso de  satisfação e gratidão, pela  minha concordância com suas palavras. Já o Joseph olhou me de viez e novamente fez menção de se retirar.
Eu disse:  - Calma Joseph, você também esta coberto de razão em sua fala. A sua  crença e defesa de um Deus é justa, pois, é  óbvio que sem esse ‘poder supremo’  que denominas de Deus, nem aqui a descansar, estaríamos. Pois, como poderiam as coisas se originar, prosperar,  reproduzir e evoluir sem um ‘criador’.
Bem, não fiquem  zangados e procurem me ouvir, já que agora tenho  que mostrar que ambos estão equivocados, para  não dizer errados.
Pois, se deus existe, essa história de criação da terra e da vida, nas condições ambientais e só  aqui no no Planeta Terra não se coaduna, senão vejam: Deus existe, mas não criou a Terra, nem a  água e os animais na Terra. Ele criou o Universo, ou seja, o conjunto de todas as coisas.  Deus deu origem ao  existir das coisas.  E as coisas de por si, como um material em laboratório, segundo as condições existentes passou-se a geração espontânea, assim as coisas, seres e objetos foram aparecendo e se transformando, impelidas apenas pela necessidade de existir. Isso é “evolução”. Deus é perfeito demais para ficar criando coisinhas como, substâncias e seres como nós, os humanos. Deus é perfeito apenas pelo fato de consentir com o ‘devenir’, a geração de coisas imperfeitas como o ‘homem’.

Portanto, esta errado o Joanete quando reclama a inexistência de um Deus só para si,  que o ajude a 'se dar bem'. E,  também esta errado você Joseph, que reivindica a  existência de um Deus para si, como também  para as pequenas coisas mundanas da vida. Com uma forma de agradece-lo ao menos, pelo prazer do ócio. Mesmo que esse laser seja apenas o de tomar umas pingas olhando as ondas a quebrarem os rochedos, ou seria o contrário? - O rochedo quebrarem as ondas?
No horizonte, já percebia a chegada das primeiras sombras da noite, resolvi que  já era tarde para colóquios de verão, disse: - Velho-Elói, pendura mais essa e fiquem com Deus. Já esta noite, vou embora antes que o fantasma do padre reapareça. 
Quando, olhando os rochedos próximos a praia avistei uma silhueta sobre um deles, era o ‘fantasma do padre’. Um arrepio percorreu meu corpo e sem mais conversa, resolvi que minha vista é que estava turva e que  já era tarde para colóquios de verão. Já ia longe quando ouvi: - Velho é o seu passado e vê se pague sua conta e acredita no que digo.

Fontes:
Contos 2014 "FANTASMAS EXISTEM" - COLÓQUIOS NUMA TARDE DE VERÃO (homenagem póstuma ao amigo Elói)- Vicente J Oliveira 
Imagens do Google     
Edição: ideiaquilvicenda